segunda-feira, 14 de abril de 2008

Queima da cana-de-açúcar é responsável por doenças respiratórias em crianças e idosos

Brasil festeja lucros das exportações de açúcar e álcool, mas continua ignorando os prejuízos à saúde da população e ao SUS

O Brasil tem, hoje, cerca de 5 milhões de hectares de cana-de-açúcar plantados, 75% no Estado de São Paulo. Da área total cultivada, 80% é queimada nos seis meses de pré-colheita, o que equivale a, aproximadamente, 4 milhões de hectares. Com a queima de toda essa biomassa por longo período, são enviadas à atmosfera inúmeras partículas e gases poluentes, que influem direta e indiretamente na saúde de praticamente todos os habitantes do interior do Estado de São Paulo. É nestas regiões que se concentram as plantações, desde que o cultivo da cana substituiu quase que completamente o do café.

Diversos estudos, realizados por pneumologistas, biólogos e físicos, confirmam que as partículas suspensas na atmosfera, especialmente as finas e ultrafinas, penetram no sistema respiratório provocando reações alérgicas e inflamatórias. Além disso, não raro, os poluentes vão até a corrente sangüínea, causando complicações em diversos órgãos do organismo.

O Dr. José Eduardo Delfini Cançado, da Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia (SPPT), finalizou em 2003 uma tese de doutorado sobre o assunto, que apresentou à Faculdade de Medicina da USP. Adaptado para a forma de artigo, o estudo será publicado na edição de maio de 2006 da revista científica Environmental Health Perpectives.

O trabalho focalizou a região de Piracicaba e baseou-se em pesquisas anteriores. Uma delas, do dr. Márcio Arbex – ex-presidente regional da SPPT - teve como objeto de pesquisa a cidade de Araraquara, no ano de 1995, e concluiu que o aumento de partículas de fuligem (provenientes da queima da cana) era diretamente proporcional ao crescimento das inalações realizadas no Hospital São Paulo de Araraquara. A tese é do dr. Cançado baseou-se também no estudo de uma física, da Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz (ESALQ-USP), que coletou e analisou a composição das partículas suspensas na região de Piracicaba. Assim, tornou possível definir quanto da poluição atmosférica da cidade advém da queima de combustíveis fósseis (automóveis, principalmente), da indústria e da queima de biomassa (cana, principalmente). A análise dos dados confirmou que 75% das partículas finas provêm da queima da cana-de-açúcar.

A poluição atmosférica pode ser medida em microgramas de partículas poluentes por metro cúbico de ar. A taxa permitida pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente é 50 microgramas. A média anual calculada na região de Piracicaba foi de 56, exatamente a mesma que a da cidade de São Paulo. O dado mais alarmante, porém, é que nos seis meses da safra, a taxa, em Piracicaba, sobe para 88 e na entressafra cai para 29.

"O que fiz foi correlacionar estes dados com as internações de crianças menores de 13 anos e de idosos com mais de 65 anos por doenças respiratórias em hospitais do SUS. Estudei as duas faixas mais suscetíveis: as crianças, por ainda não terem sistema imunológico bem formado, e os idosos, por freqüentemente já apresentarem doenças de base, como bronquite, asma, enfisema pulmonar e insuficiência cardíaca", explica o dr. Cançado. Essa análise concluiu que quando há aumento da poluição, há também aumento das internações, na seguinte proporção: a cada 10 microgramas a mais de partículas por metro cúbico há aumento de 20% nas internações.

Ainda segundo o especialista, "as pessoas já percebiam os malefícios em seu cotidiano e os médicos notavam o forte impacto da queima na saúde da população, mas não tinham uma comprovação científica".

A queima da cana é realizada para facilitar e agilizar a colheita. Uma alternativa considerável é o uso de máquinas coletoras. Em áreas com declive maior de 12% ou muito pequenas, porém, é impossível a utilização desta máquinas. Para o dr. Cançado, este é o principal entrave para o fim das queimadas, mas, como justificativa, é insuficiente.

"O plantio e a colheita da cana são feitos praticamente da mesma forma há 50 anos. Não se investe na melhora tecnológica ou das condições de trabalho, apenas em diminuir os custos e aumentar os lucros. Há condições para se desenvolver máquinas que entrem nas áreas que hoje são consideradas não mecanizáveis, mas se não houver uma lei obrigando, ninguém vai investir", afirma.

Por sua vez, o corte manual é possível sem as queimadas, mas os próprios cortadores, que recebem por produtividade, preferem cortar a cana já queimada, pois o trabalho fica mais veloz. Estes trabalhadores, inclusive, estão entre os mais atingidos pelos malefícios da poluição resultante da queima de cana-de-açúcar. Além disso, suas condições de trabalho são absurdas, com longas jornadas de exposição exagerada ao sol e alimentação inadequada.

No ano passado, foram registradas 13 mortes de cortadores por exaustão na região de Piracicaba. A gravidade desta estatística resultou numa medida do Ministério Público, que obriga os proprietários de todo o Estado de São Paulo a registrar os trabalhadores e pagar salário fixo, que não dependa da produtividade.

E, falando em determinações legais, em 2001, o então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, prorrogou o prazo de uma lei que obrigava a extinção das queimadas até 2008. De acordo com a nova determinação, aprovada por decurso de prazo, ou seja, sem ser adequadamente votada, as áreas mecanizáveis (relativamente planas e maiores do que 150 hectares) devem parar as queimadas até o ano de 2021. Já as áreas menores e com declividade, ou seja, as não mecanizáveis, tem prazo estendido até 2031. Essa lei determina também que a extinção deverá ser escalonada, de maneira que há metas anuais de diminuição de queimada. Para 2006, a redução deverá ser de 20%.

"O prazo é longo demais", acredita o dr. Cançado, que afirma que a lei se contradiz, pois determina que a ela própria deve ser suspensa, caso seja demonstrado que há prejuízos graves para o ambiente ou para a saúde. "O problema é que quando foi publicada, já havia estudos comprovando os graves problemas de saúde que as queimadas causam".

Dr. Cançado relata que os grandes produtores já estão conscientes da necessidade de parar de queimar. O problema ainda são os pequenos, cujas áreas não são mecanizáveis. Ele acredita que estes produtores deveriam ser obrigados a substituir o cultivo ou, caso sejam desenvolvidas máquinas que contemplem os terrenos menores, utilizá-las. Neste caso, nem mesmo o preço das novas máquinas pode ser colocado como barreira, pois há grandes cooperativas que poderiam se unir para adquiri-las.

O setor, aliás, é um do mais fortes do país. O Brasil é o maior exportador de açúcar do mundo e o álcool tem excelente valorização na economia nacional e mundial, com comercialização com o Japão e possibilidades de exportação para a Alemanha.

Regionalmente, os usineiros têm muita influência. Diversas cidades do interior de São Paulo estão intensamente envolvidas com a plantação da cana e com toda a indústria relacionada a ela. Em alguns casos, a relação chega a ser de dependência. Em Piracicaba, por exemplo, entre 60 e 70% da economia giram em torno do setor.


Dr. Cançado lembra que o problema é grave e precisa de uma solução. "Felizmente, cada vez mais se fala sobre isso. Aos poucos as pessoas estão sendo sensibilizadas e começando a cobrar. Têm ocorrido várias ações públicas em cidades do interior, como Ribeirão Preto, Franca, Jaú, Piracicaba, Santa Bárbara. Todas têm evidência científica mostrando que as queimadas fazem mal à saúde e que têm que acabar".

À população, freqüentemente se apresentam as contribuições da exportação de produtos como açúcar e álcool para a economia brasileira. Deixa-se de lado, porém, os gastos atuais e futuros com o adiamento de soluções para problemas como o das queimadas.

A tese do dr. José Eduardo Delfini Cançado evidencia que os poluentes têm causado inúmeras internações e, conseqüentemente, altos gastos para o Sistema Único de Saúde. Porém, por serem efeitos indiretos da queima da cana-de-açúcar, acabam não sendo considerados. Isto sem contar que a pesquisa considerou apenas as internações. A questão é que a maior parte dos atingidos por problemas de saúde ocasionados pela poluição atmosférica tem gastos com consultas e remédios, mas não chega a ser internada, o que indica que os efeitos são ainda mais alarmantes.