sexta-feira, 6 de junho de 2008

Marina Silva: política ambiental se faz com o coração


Em entrevista concedida ontem ao Blog do Noblat (http://oglobo.globo.com/pais/noblat/), em comemoração ao Dia Mundial do Meio Ambiente, a senadora Marina Silva (PT-AC) comemora as conquistas do Brasil na área ambiental e ensina: “Política ambiental não se faz com uma melancia na cabeça. Se faz com muito compromisso no coração, boas idéias na cabeça e uma boa capacidade ouvir”.



Comemoramos hoje o Dia Internacional do Meio Ambiente. O que a senhora comemora hoje e que há 15, 20 anos parecia um sonho impossível?
A grande comemoração que se pode ter usando o referencial da morte do Chico Mendes [em 1988] é a dimensão e a densidade com quê se trata hoje a questão da Amazônia. Há 20 anos, Chico Mendes era uma voz quase que isolada dizendo que a floresta era muito melhor em pé do que derrubada. De que era possível um processo de desenvolvimento que não era aquele de destruir a floresta para plantar capim e criar gado. Não tinha um envolvimento e o acolhimento dessa preocupação. A lógica era que tinha que transformar a Amazônia no Sul e no Sudeste. E os paradigmas que eram exportados de cá pra lá e importados de lá pra cá é que éramos atrasados porque éramos mato, e o Sul e Sudeste eram desenvolvidos porque não tinham florestas.

Se fosse me imaginar naquela época com idosos, crianças, 86 pessoas, como foi o caso do último empate que fizemos lá no Chapurí [município onde Chico Mendes foi assassinado], isso é um avanço abissal. Naquela época, a polícia estava ali para dar segurança aos fazendeiros, para que eles pudessem derrubar a floresta. Os seringueiros e os índios eram os mais vulneráveis. Hoje, 20 anos se passaram e você tem o Exército, a Polícia Federal, o Ibama, o ministério do Meio Ambiente, vários agentes do estado fazendo o empate institucional.

Hoje é um dia mais para se comemorar do que para lamentar então?
É um dia para se fazer as duas coisas. Comemorar as conquistas, que não são poucas. Hoje foi colocada uma equação para a humanidade e para o Brasil: como desenvolver com preservação dos recursos ambientais e como preservar com desenvolvimento? Essa equação não existia há 20 anos. É um dia para comemorar essa necessidade imperativa. E é um dia para se preocupar porque as condições efetivas para mudanças de paradigma para modelo de desenvolvimento ainda não estão colocadas. É a combinação de vários elementos de políticas públicas, da Academia, dos movimentos sociais, das organizações não-governamentais (Ongs), dos diferentes setores. A crise ambiental que se vive hoje no mundo deixou de ser um problema de ambientalistas. Virou um problema de todos. Querendo ou não, teremos que atravessar esse século tentando resolver essa equação.

Digamos então para os próximos dez anos, por onde o Brasil deveria se pautar para chegar a um nível excelente de modelo de desenvolvimento sustentável?
Diante da velocidade com que as coisas estão acontecendo, pensar em dez anos é um período muito grande em relação à velocidade dos problemas como eles se avolumam. São políticas que requerem um amadurecimento que não acontece da noite para o dia. Mas é fundamental ter a clara determinação de que estamos vivendo uma reflexão civilizatória: ou de fato produzimos mais com menos impacto na natureza, ou se a gente vai querer continuar a reproduzir nossa existência material causando mais malefícios à natureza. E aí vamos inviabilizar nossa própria existência.

Se eu penso numa perspectiva de dez anos, penso logo no enfrentamento das questões que levam ao aquecimento global, em mitigar os efeitos do clima e ao mesmo tempo criar mecanismos de adaptação às conseqüências que já estão em curso. Também em meios e estruturas de conhecimento técnico, de arranjos organizacionais nos mais diferentes níveis para enfrentar as vulnerabilidades, principalmente das pessoas mais empobrecidas de todas as regiões do planeta. E isso só se resolve com mudança de modelo de desenvolvimento, descarbonização das economias carbonizadas do mundo e a busca de economias limpas, no sentido de produção de energia renovável, e que o Brasil, se souber aproveitar, vai sair na frente.

Como podemos aproveitar então?
O Brasil tem 45% de matriz energética limpa. E ele deve continuar com uma economia descarbonizada, mas precisará de uma proposta de matriz energética que incorpore a diversidade. E não busque apenas alternativas que aparentemente possam parecer panacéias à primeira vista. Não apostar apenas em hidroeletricidade ou apostar em energia nuclear – que não se tem total solução para a questão dos resíduos ou da segurança -, mas buscar outros potenciais energéticos: energia eólica, solar.

Outro grande desafio é desvelar o desmatamento dos biomas em relação às emissões. 75% das nossas emissões vêm do desmatamento. Então, no caso do Brasil, esta é uma necessidade determinante: como enfrentar o desmatamento? Nos últimos três anos tivemos 59% de redução do desmatamento. Isso significou quase um bilhão de toneladas de CO2. Isso representa 14% de tudo que deveria ter sido reduzido pelos países desenvolvidos até 2012, desde o período de compromisso do protocolo de Kyoto.

Todavia, como não se andou na mesma velocidade o apoio às práticas de desenvolvimento sustentável, dos setores ligados à Agenda 21, agora com o aumento do preço das commodities, o aumento da estiagem, e o período eleitoral - que faz com que os governos estaduais não sejam solidários com as propostas do governo federal- , houve aumento do desmatamento. E que poderá levar o desmatamento a patamares indesejáveis em 2008. E logo após termos conseguidos uma conquista espetacular na preservação da Amazônia, da biodiversidade. Se o desmatamento da Amazônia tiver aumentando, todos nós perdemos.

A senhora fala de energias limpas. Os Biocombustíveis, que são a bandeira do presidente Lula no exterior já recebe críticas de que seria um dos vilões no aumento no desmatamento e no aumento da inflação dos alimentos. Daqui a pouco também teremos que frear alternativas que hoje são soluções?
Sem sombra de dúvidas. Essa é hoje uma grande oportunidade, mas não devemos deixar de reconhecer que um dia poderá ser uma ameaça. O Brasil tem tudo para lidar com uma Agenda só da oportunidade. Vai depender do zoneamento agrícola, de ter uma visão de não plantar cana de açúcar na Amazônia, vai ter que ter uma visão muito clara de que a produção de biocombustíveis não pode ameaçar a segurança alimentar, nem a proteção do Meio Ambiente. O Brasil não pode ficar resistindo à idéia de ter que certificar sua produção de biocombustível. Pelo contrário. O Brasil tem a oportunidade de ser o referencial. De colocar o paradigma. Biocombustivel será produzido no mundo como está sendo produzido no Brasil. Essa é a vantagem estratégica.

Depois de muita pressão do governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, o presidente Lula revogou parte da resolução do Conselho Monetário Nacional de proibir concessão de crédito oficial para municípios com alto índice de desmatamento do bioma amazônico – resolução essa que foi uma conquista da senhora. Não é frustrante ter acabado de sair do governo e ver suas decisões sendo criticadas pelo governador e revogadas pelo governo?
As coisas não são feitas em termos de pessoas. A minha saída não foi para desconstituir, foi para constituir. A pressão que estava vindo era mesmo para revogação das medidas, da retida dos embargues em área embargadas. Mas quando eu saí ainda não tinha nenhum texto em relação a essa resolução. Mas no dia que foi feito uma reunião interna no governo, na véspera da reunião com os governadores para o lançamento do PAS [Programa Amazônia Sustentável], o entendimento era que os agentes financeiros estavam com dificuldade de entender o alcance da portaria do ministério do Meio Ambiente.

Eles nos cobravam algum ato que deixasse isso claro, em relação às propriedades que ficavam dentro dos Biomas. Mas esse arranjo não foi feito comigo. E vale ressaltar que não foi revogada a decisão do Conselho Monetário, o que foi feito foi um ato é que são os próprios Estados – e isso a gente pode questionar, está sendo questionado - que devem decidir quais municípios estão dentro do bioma amazônico e quais não estão. Mas eles não podem fazer isso arbitrariamente. Existe um mapa ao qual devemos ficar alerta. Se esse mapa foi fraudado, qualquer um pode levar isso à Justiça. Todos nós temos que fiscalizar isso. O que ficou dito na reunião era que ficasse claro para os bancos. Apesar de que pra mim isso era até um preciosismo, porque a portaria já dizia que a regra valeria para os municípios que estavam 100% dentro da Amazônia.

O governador Maggi disse que se essa resolução do Conselho não fosse totalmente revogada influenciaria diretamente na alta da inflação no preço dos alimentos. Também é dele a afirmação de que “não é possível plantar sem derrubar a floresta”. Existe alguma verdade nessas afirmações?
Com certeza, para alguns setores que não estão pensando estrategicamente, a proteção da Amazônia, inclusive como parte de valorização do seu próprio empreendimento, sim. Existem aqueles que se movem pelo coração e pela razão. E pelo menos aqueles que não se movem pelo coração deveriam se mover pela razão, já que são pessoas muito inteligentes. Então, aqueles que não conseguem ter o alcance de ficar pensando no lucro fácil de dez anos, e sacrificando o lucro de milhares e milhares de anos, para eles, se não fosse essa argumentação, com certeza seria outra. Sempre vão arranjar uma argumentação para ser contra.
É claro que a crise dos alimentos é uma crise grave que deve ser tratada. Mas ela não se remete a um problema isolado do Brasil. O aumento do preço do petróleo, por exemplo, influencia toda a cadeia produtiva. Está colocado no mundo inteiro. E no caso do Brasil ele não pode render uma questão estratégica em curso.

Um programa que envolve três ministérios, governos estaduais, chegando a resultados incríveis de chegar a níveis de desmatamento de 17 anos atrás, quando tínhamos menos população, menos infra-estrutura e um baixíssimo, quase crescimento zero e comparar com uma realidade de 2007? As duas coisas devem ser resolvidas. Lamento muito porque eu trabalhei com o governador Maggi e o desmatamento no Mato Grosso tinha caído 72%. Esse não era o momento do governador, com a importância política e econômica que ele tem, sair da agenda de combater às práticas ilegais para ficar questionando as medidas. Essa agenda era para permanecer. Esse é um desafio de toda a sociedade.

A senhora sempre diz que a Amazônia está acima de nós. Está na hora de o Brasil correr atrás do prejuízo, investir mais na preservação da floresta, em fiscalização e controle, ou está na hora de perder o medo de falar em internacionalização da floresta?
Acho que a gente não tem sequer que discutir internacionalização da Amazônia. Esta questão não está colocada. Não há a menor hipótese em concordar com isso. Devemos, sim, é fazer cada vez mais e melhor nosso dever de casa. Às vezes você fica inseguro de deixar a porta aberta. Mas temos que fechar todas as brechas para não dar nenhum argumento de que não temos capacidade e compromisso se cuidar da Amazônia. A questão é ética. Os países desenvolvidos são interpelados pelo seu passado. Até me inspirei a falar isso numa entrevista que eu li de um psicanalista italiano chamado Contardo Calligaris, que ele diz que os Europeus são interrogados pelo seu passado, mas nós, os latino-americanos, somos interrogados pelo nosso futuro. Nosso passado é muito jovem. Em contrapartida temos todo o futuro pela frente. E podemos fazer diferente. E isso pode ser fundamental. Eles cometeram erros na preservação de seus biomas, mas não temos direito de reivindicar querer destruir os 60% que nós ainda temos.

A senhora deixou o ministério com a questão da política indigenista sendo criticada ora por militares da Amazônia, ora pelo próprio José de Anchieta, governador de Roraima, onde fica a reserva indígena Raposa Serra do Sol, homologada em área contínua pelo presidente Lula. O que significaria voltar atrás nessa homologação?
Um grande atraso civilizatório. O Brasil, quando os portugueses chegaram aqui, em 1500, eram cinco milhões de índios. Hoje são 400 mil. Eliminamos um milhão a cada século. Nem o povo judeu sofreu tal genocídio. Todavia, no Brasil ainda temos 220 povos. Recentemente saiu nos jornais fotos de populações isoladas no meu estado, o Acre. Isso é um tesouro, isso é uma vantagem civilizatória que qualquer país, qualquer povo mais do que deveria se orgulhar. Retroceder na demarcação das reservas indígenas, criar ilhas, é nos empobrecer. Porque seria também impor a essas comunidades que têm uma língua diferente, uma cultura diferente, uma economia diferente, uma espiritualidade diferente, a mesmice de sermos todos iguais. Para além das questões jurídicas, tem o empobrecimento do pouco que nos resgata. Plantar arroz faz parte da economia, mas plantar arroz pode ser feito em qualquer terra preparada para plantar arroz. Aquela cultura é só aquela ali. Da mesma forma que a população ocidental olha para Jerusalém como um ponto de referência, eles olham para o Monte Roraima e se identificam como seu ponto de existência no mundo.

E esses cinco anos à frente do ministério lhe rendeu uma vaga na lista do jornal britânico The Guardian sobre as 50 pessoas que podem salvar o planeta. Uma grande honra?
Acho que foi uma lista de 50 pessoas, da ciência, da política, da militância social, do mundo das artes, de todos os setores, exatamente como signos. Para mostrar que a questão é tão ampla, tão complexa, que não pode ser acatada só por ambientalistas, por políticos. Deve ser por toda a sociedade. Elas não estão substituindo a diversidade da sociedade para salvar o planeta. Ela está dizendo que devemos ser todos juntos ao mesmo tempo agora. Me sinto como a fração que representa esse todo ao mesmo tempo agora. Mas muito honrada, sem dúvida.

A senhora que é, claro, um símbolo internacional de preservação do Meio Ambiente, vai levantar essa bandeira agora no Senado, sem dúvida. Mas já tem algum projeto em especial para retomar os trabalhos com essa frente?
A lei de acesso aos recursos genéticos esta tramitando no Congresso há mais de 12 anos e que é fundamental para proteção e uso sustentável da biodiversidade, vai manter a floresta em pé, e buscar novos meios econômicos de nos desenvolver sem derrubar a floresta. Durante os cinco anos que fiquei no governo, batalhei exaustivamente para que houvesse um acordo sobre uma lei de acesso aos recursos genéticos que representasse essa visão atualizada de lidar com diferentes setores no momento de crise ambiental em que estamos vivendo. Infelizmente isso não foi possível. A resistência foi muito grande, mas, como senadora, vou lutar por isso. A agenda do desenvolvimento sustentável é o grande desafio. Não se trata de compatibilizar meio ambiente com desenvolvimento. Trata-se de desenvolver com sustentabilidade e de preservar com desenvolvimento. Política ambiental não se faz com uma melancia na cabeça. Se faz com muito compromisso no coração, boas idéias na cabeça e uma boa capacidade ouvir.

Transcrito do blog do Noblat (http://oglobo.globo.com/pais/noblat/)

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